Palabra y Razón ISSN 2452-4646 versión en línea Nº16 Diciembre 2019 Universidad Católica del Maule
A crítica
dos
argumentos filosóficos a favor da existência de Deus e sua superação na
filosofia da religião de Paul Tillich
The
criticism of the philosophical arguments in favor of the existence of
God and
their overcoming in the philosophy of religion of Paul Tillich
Etienne Higuet
Doctor en Teología
Universidade Federal
de Juiz de Fora
etienne.higuet@gmail.com
Fecha recepción: 25/07/2019
Fecha aceptación: 11/11/2019
Como
citar este artículo: E. HIGUET.
“A
crítica dos argumentos filosóficos a favor da existência de Deus e sua
superação na filosofia da religião
de Paul Tillich”
en Palabra y Razón. Revista de Teología, Filosofía y Ciencias de la Religión Nº16,
Diciembre 2019,
pp. 23-43 https://doi.org/10.29035/pyr.16.23
Resumo: Pretendo apresentar e
discutir, neste breve ensaio, a crítica de Paul Tillich aos argumentos
filosóficos
(ou “provas”) tradicionais a favor da existência de Deus1.
Pesquisarei primeiro as raízes kantianas da crítica, da qual Tillich
retoma a
terminologia. Em seguida, apresentarei a visão de Tillich, que incluirá
uma
crítica da posição kantiana e avanços conseguidos por Tillich em
relação a
Kant, na perspectiva de uma ontologia existencial e de uma razão
ontológica.
Nas considerações finais, mostrarei brevemente como a reflexão de Kant
condiciona tanto a visão de Tillich quanto a posição de filósofos
“pós-modernos” como Jacques Derrida e Jean-Luc Nancy.
Palavras-chave: existência de Deus;
argumentos; Kant; Tillich; interpretação existencial; pósmodernidade.
Abstract: I
intend to present and discuss, in this short
essay, the criticism of Paul Tillich to the tradicional philosophical
arguments
(or “evidences”) in favour of the existence of God. I will search first
the kantian
roots of this criticism, which Tillich resumes terminology. Then I will
present
the vision of Tillich, that will include a critique of Kantian position
and
advances achieved by Tillich in relation to Kant, from the perspective
of an
existential ontology and an ontological reason. In closing remarks, I
will show
briefly how the reflection of Kant conditions both the vision of
Tillich as the
position of “post-modern” philosophers such as Jacques Derrida and
Jean-Luc
Nancy.
Keywords:
existence of God; arguments; Kant; Tillich; existential
interpretation; postmodernity.
Introdução
Num artigo publicado em 2014, estudei a
contribuição de Paul Tillich à superação do teísmo e da ontoteologia.
Para
Tillich, o Deus do teísmo teológico é um ser ao lado dos outros, isto
é, uma
parte do conjunto da realidade, submetida à estrutura do real, por mais
que
seja a parte mais importante do real. Ele é um ser, não o ser-em-si.
Submetido
à estrutura sujeito-objeto, ele se torna objeto para nós sujeitos e,
enquanto
sujeito, faz de nós seus objetos. Deus aparece como o tirano invencível
que
poda a nossa subjetividade e a nossa liberdade. Já mostrei também que,
para
Tillich, a superação do teísmo exigia uma reinterpretação das chamadas
“provas
da existência de Deus”. Pretendo retomar agora e desenvolver a questão
dos
argumentos filosóficos a favor da existência de Deus, mostrando como
esse problema
preocupou Tillich durante boa parte da sua carreira, especialmente na
sua
sistematização teológica, já na Dogmática de 1925 e, sobretudo, na
Teologia Sistemática
(de 1951 em diante), em alguns textos conexos e em diversos cursos
oferecidos
na Alemanha e nos Estados Unidos.
Objetivo, em primeiro lugar, explicitar a
inspiração kantiana de Tillich, sempre reconhecida por ele. O que não o
impediu
de mostrar que o seu ilustre antecessor ficara a meio caminho, quando
não
submeteu o argumento moral à crítica proferida contra os argumentos
ontológico,
cosmológico e teleológico. Para Kant, a existência de Deus não pode
constituir
o objeto de um conhecimento seguro e certo na ótica da filosofia
transcendental, pois assim concebido Deus seria um transcendente ou uma
“coisa-em-si” que ultrapassa as condições de possibilidade do nosso
conhecimento objetivo. As categorias do entendimento não são aplicáveis
a um objeto
transcendente, inclusive Deus, pois, neste caso, nenhuma intuição
sensível
corresponde às formas do entendimento que são as categorias. Não se
pode inferir
a existência de Deus a partir do seu conceito. Mas Kant acabou optando
pela prova
moral da existência de Deus, ao considerar a existência de Deus como um
postulado
da razão prática. O argumento de Kant, baseado na necessidade da razão
prática,
conduz a um conhecimento de Deus, mas só numa relação prática. Não há
demonstração da existência de Deus nem da sua não-existência, mas Deus
é a condição
(transcendental) de possibilidade da moral e da felicidade. A reflexão
de Kant
desemboca numa espécie de “fé da razão”.
Já na Dogmática de 1925, Tillich mostra os
limites da argumentação kantiana. É que as provas de Deus não são
provas, mas,
antes, racionalizações e formas de expressão da condição de criatura.
Elas
manifestam um abalo do condicionado na sua mundaneidade, sendo objeto
de uma
intuição originária vinculada a uma atitude místico-transcendente.
Para
Tillich, Deus não “existe”, mas é o ser-em-si
para além da essência e da existência. Resulta daí que todo argumento a
favor
da existência de Deus seria uma negação de Deus. Na realidade, os
argumentos ou
provas da existência de Deus são expressões da pergunta por Deus que
está
implícita na finitude humana. O chamado argumento ontológico aponta
para a
estrutura ontológica da finitude. Os chamados argumentos cosmológico e
teleológico são a forma tradicional da questão do ser que vence o não
ser e da
coragem que supera a angústia.
Não há
uma demonstração lógica da existência de
Deus, mas uma consciencia ontológica e um conhecimento cosmológico do
incondicional. É o ser humano inteiro, em todas as
suas funções, que tem consciência do incondicionado. Este não é um ser,
nem o
mais alto, nem mesmo Deus. Ao termo Deus correspondem diversos símbolos
concretos que expressam a nossa preocupação suprema ou o fato de sermos
tocados
por algo incondicional. “Mas esse ‘algo’ não é uma coisa, mas o poder
de ser no
qual todos os seres participam”.
A validade dos argumentos reside
na descrição, negativa ou positiva, da situação humana, que eles
fornecem, na
descrição da finitude do ser humano e do seu mundo e, ao mesmo tempo,
na
descrição da participação do Infinito no finito e vice-versa. O que não
se
justifica é o salto que eles fazem, da análise da finitude da
existência para
um ser chamado Deus. A descrição da realidade encontrada como
contingente e
condicionada numa corrente de causas e efeitos é um elemento
existencial na
filosofia do passado e do presente. É o que os filósofos da existencia
chamam
descrição da finitude.
Haverá sem dúvida, na concepção
tillichiana da fé como o “estar tomado por aquilo que nos toca
incondicionalmente”, um substituto para os argumentos lógicos a favor
da
existência de Deus. Aliás, aqui reencontramos Kant, que escreveu no
prefácio à
segunda edição da Crítica da Razão pura: “Tive, portanto, de
suprimir o saber
para obter lugar para a fé”2.
Na Crítica
da Razão prática, o incondicionado se manifesta na liberdade e na
lei
moral. Em Tillich, o incondicionado se manifesta na religião. Tillich
compartilha com Kant e com alguns filósofos da linha chamada pósmoderna
e
pós-heideggeriana uma concepção consequente da “fé da razão”.
1. Immanuel
Kant: A desmontagem das provas especulativas da existência de Deus e a
elaboração da prova moral na Crítica da razão pura3
A
existência de Deus não pode constituir o objeto de um conhecimento
seguro e
certo na ótica da filosofia transcendental, pois assim concebido Deus
seria um transcendente
ou uma “coisa-em-si” que ultrapassa as condições de possibilidade do
nosso
conhecimento objetivo. Na “Analítica dos princípios”, o
conhecimento se
reduz a relacionar à unidade sintética da apercepção – constituída a
partir das
categorias (substância, causalidade, realidade, existência) - uma dada
intuição, que será sempre uma intuição sensível, não intelectual,
subordinada
às formas subjetivas e a priori do espaço e do tempo. As
categorias do
entendimento não são aplicáveis a um objeto transcendente, inclusive
Deus.
Mas a
“dialética transcendental” mostra que a persistência transcendental das
questões
metafísicas últimas da razão torna urgente uma auto-reflexão crítica do
poder
de conhecer a priori: “O entendimento não pode fazer mais do
que
antecipar a forma de uma experiência possível em geral [...] não pode
jamais
ultrapassar os limites da sensibilidade, no interior dos quais somente
nos são
dados objetos”4.
Contudo,
as questões especiais da metafísica sobre a alma, o mundo e Deus não
são vãs,
pois fazem parte da estrutura mesma dos raciocínios da razão e são o
síntoma de
uma metafísica natural no homem. A interrogação metafísica é uma
necessidade da
razão humana. Para a razão humana, colocar estas questões é uma
necessidade lógico-subjetiva,
mas a razão é levada à ilusão transcendental de acreditar que suas
máximas
lógico-subjetivas correspondem a realidades, já que, neste caso,
nenhuma intuição
sensível corresponde às formas do entendimento que são as categorias5.
Herdeiro
de uma longa tradição marcada pelo cristianismo, Kant coloca a questão
de Deus
como problema de um princípio transcendente e personificado de tudo o
que é, o ens
realissimum, o ente mais real de todos, que contém em si a
possibilidade de
todos os entes finitos.
A
partir dessa estrutura de raciocínio decorrerão as provas da existencia
de
Deus, que Kant crê poder reduzir, de maneira exaustiva, a três
argumentos fundamentais:
físico-teológico, cosmológico e ontológico. Kant mostrará que as duas
primeiras
provas são retomadas inconscientes da prova ontológica, mas que esta é
inadmissível de um ponto de vista crítico. Trata-se de uma prova
estritamente a
priori, deduzindo diretamente
(analiticamente) do conceito de Deus ou do ser
perfeitíssimo – da sua possibilidade lógica - a necessidade de sua
existência.
Em relação a ela, Kant concluirá que, do conceito de perfeição à
existência, ou
da existência ao conceito de perfeição, o vínculo é finalmente
analítico. As
ordens do lógico e do real correspondem-se numa unidade puramente
analítica.
Segundo a tradição (Agostinho, Anselmo, Descartes) ainda
reavivada por
Leibniz,
Deus é o único ser cuja existência pode ser
considerada consequência
necessária de seu conteúdo nocional. Uma vez que, por definição, ele é
um ser perfeito,
acima do qual nada se encontra, a existência deve ser um de seus
atributos
necessários, pois se Deus não existisse seria ainda mais imperfeito do
que o
menor dos existentes contingentes (tudo o que existe efetivamente sendo
superior na ordem do ser a tudo o que é simplesmente possível), o que
manifestamente se opõe ao seu conceito6.
Ora, é
impossível “erigir a existência ao nível
de um predicado real”7
sem que o sujeito da predicação tenha sido dado na experiência
sensível. O
sujeito precisa primeiro ser dado para que as suas propriedades
essenciais
possam lhe ser aplicadas. Ora, isso é impossível no caso de Deus,
porque dele
não há conteúdo sensível, já que está além da experiência. Cede-se aqui
a uma
ilusão transcendental.
A prova
cosmológica depende do mesmo
pressuposto (inferir a existência de Deus a partir do seu conceito),
mas parte
do problema da existência em geral. Ela não é totalmente a priori,
mas
infere da contingência de todos os seres conhecidos e reais a
existência de um
ser ou substância necessário como causa, posto fora da série de
acontecimentos
do mundo, e que é o único a explicar sua possibilidade. “Mas o conceito
de tal
ser necessário leva uma vez mais a absorver a existência na lógica, em
outros
termos, a deduzir a priori um existente, o que é
injustificável do ponto
de vista crítico”.8
De
novo, a dedução é ilegítima, pois o princípio de conexão causal só tem
validade
e sentido no mundo dos fenômenos, ou seja, no mundo da experiencia
empírica. Há
um salto indevido do empírico para o ontológico. Não há como provar a
existência de um ser necessário, nem que esse ser seja o ser
perfeitíssimo e
realíssimo ou Deus.
A prova
físico-teológica (ou
teleológica), que se apoia na observação das características do mundo
sensível,
parece livre da confusão entre possibilidade lógica e possibilidade
transcendental com base empírica. É que a finalidade (ou teleologia) experimentada na percepção da ordem da natureza
empírica no seu conjunto parece remeter ao conceito de uma causa
intencional
que opera segundo Ideias ou por liberdade, isto é, de modo diferente da
causalidade própria aos fenômenos, a única acessível à linguagem da
natureza
físico-matemática. Contudo,
Resta que a síntese entre a
causa final e a determinação concreta dos fenômenos que subjazem a essa
prova é
em si irrealizável. Apontando para um existente concebido como a
condição
necessária das existências finalizadas, esse argumento traz a marca da
prova cosmológica,
concluindo do contingente para o necessário, e mais originalmente ainda
da
prova ontológica, concluindo do conceito para a existência9.
O uso
regulador das Ideias da razão pura
permite, todavia, a emissão da “hipótese de um ordenamento global da
natureza
empírica, como se esta fosse o efeito de uma intenção inteligente”10.
Na Crítica
da razão pura, a questão da
finalidade acaba se deslocando do campo da teoria para o campo da
prática. Ao
introduzir uma finalidade na natureza, a razão é forçada a admitir que
existe
outra causalidade além do determinismo natural, que só pode ser pensada
por nós
em analogia com os produtos da arte humana. Para realizar a unidade da
experiência na apreensão do Bem total, precisamos recorrer ao uso
prático da
razão, que se ocupa com uma outra legislação, que concerne não mais
diretamente
à natureza mas à determinação imediata da vontade livre. A liberdade se
impõe a
nosso consentimento (à nossa consciência moral) como uma evidencia
prática,
supondo a capacidade de agir segundo um princípio puramente racional da
vontade, buscando na razão prática sua única lei. As leis práticas
puras, isto
é, as leis morais, cujo fim declarado é fornecido completamente a
priori pela
razão, apresentam-se como produtos da razão pura11.
Em
outras palavras, Kant encontra, no conjunto
de princípios que constituem a consciência moral – a consciência de
dever agir
conforme a lei moral – a base para apreender os objetos metafísicos.
Assim, as
questões que preocupam sumamente a razão comum: a liberdade, a
existência de
Deus, a esperança numa vida futura, que tendem a se confundir no uso
especulativo, se subordinam, no uso prático, à sua verdadeira condição
de
inteligibilidade: a saber, o princípio inerente à vontade finita que
comanda
imediatamente suas ações numa lei de liberdade. Somente o princípio da
dignidade do homem como ser livre permite unir numa perspectiva única e
globalmente significativa a ideia de Deus e a do mundo.
Por outro lado, não há, em nosso mundo
sensível, correspondência perfeita entre o bem e a felicidade, entre a
qualidade moral e ordem dos efeitos, à qual a lei moral nos daria
direito. Esse
vínculo precisa ser projetado em um mundo inteligível, do qual a nossa
liberdade não é a condição. “O sentido de nossa aventura como seres
finitos
supõe um princípio de ligação necessário entre os elementos do soberano
Bem que
a natureza, ou nossa natureza, não contém em si. Esse princípio só pode
ser Deus”12.
Como,
no mundo fenomênico, os valores morais (justiça, bondade etc.) não
estão
realizados, é necessário que além deste mundo haja um mundo metafísico
no qual
o que é seja idêntico com o que deve ser. Este postulado requer uma
unidade sintética
superior entre esse ser e o dever ser. A essa síntese unitária Kant
chama Deus.
“A Ideia de Deus assegura que não existe abismo entre as leis da
natureza e da liberdade,
mas uma continuidade baseada em um soberano Bem originário”13.
Por outro
lado, se o mundo inteligível não está sujeito às formas do espaço e do
tempo nem
das categorias, a vontade pura justifica a crença na imortalidade da
alma.
Assim, Kant acabou optando pela prova moral da
existência de Deus. Estuda a existência de Deus como um postulado da
razão
prática. O suporte, para esta prova, está no bem supremo, que reúne em
si
moralidade e felicidade e que constitui o objeto adequado da lei moral.
O
argumento de Kant, baseado na necessidade da razão prática, conduz a um
conhecimento de Deus, mas só numa relação prática. Não há demonstração
da
existência de Deus nem da sua não-existência, mas Deus é, para Kant, a
condição
(transcendental) de possibilidade da moral e da felicidade14.
Em ligação com o famoso trecho do prefácio à
segunda edição da Crítica da razão pura: “Tive, portanto, de
suprimir o
saber para obter lugar para a fé”, estaríamos aqui na frente de uma
forma de fé
da razão? É a opinião de muitos comentaristas, entre outros Wilhelm
Weischedel:
“O fundamento moral (da filosofía teológica de Kant) faz com que o
conceito de
Deus possua o caráter de um postulado e que a certeza que o acompanha
se
apresente como fé filosófica”15.
Kant
descreve o postulado da existência de Deus como uma hipótese subjetiva,
que
possui “uma necessidade racional subjetiva, porém verdadeira e
incondicionada”16.
É um fundamento
subjetivo do saber, que é, contudo, válido para uma razão prática.
Assim, a
subjetividade não é puro arbitrário do indivíduo, mas constitui uma
necessidade, vinculada à essência do ser humano como sujeito moral, de
admitir
a existência de Deus. Kant descreve também a convicção da existência de
Deus
como “pura fé da razão”, já que a razão pura é a fonte de onde ela
jorra.
Afinal, para Kant, a metafísica é mais uma questão de fé que de saber.
O fato
de que suas afirmações sejam teoricamente insuficientes – como as
afirmações de
toda fé – não tira nada da sua validade, pois essa fé está plenamente
assegurada por um pressuposto praticamente bem fundamentado,
teoricamente
irrefutável17.
Em consequência, toda fé
revelada pressupõe a fé da razão.
2.
A visão de Paul Tillich (1886-1965)
2.1.
A dogmática de 192518
Na dogmática de 1925, Paul Tillich
trata das provas da existência de Deus na seção: O ente enquanto
conforme à
essência na revelação perfeita (de Deus e do mundo na sua união). A
primeira parte trata do ente na sua pura condição de criatura. As teses
26 a 29
dizem respeito aos limites do criado. Vejamos a tese 26: “Na irrupção
da
revelação, cada ente experimenta o abalo (Erschütterung) do seu
ser-si-mesmo
ou da sua mundaneidade, e da reorientação para o ser que o (= o si
mesmo)
sustenta”19.
O nosso tema vem na tese
29: “As provas da existência de Deus são uma expressão racional,
logo
inadequada, da condição de criatura do ente. É mais apropriado ver
nelas
testemunhos do abalo e da reorientação que afetam o conhecimento do
mundo”20.
Tillich observa primeiro que as
provas de Deus são estudadas no tratado da criatura, não no tratado de
Deus
(estamos numa perspectiva teológica). É que elas não são provas da
existência
de Deus, mas, antes, formas de expressão da condição de criatura.
Negativamente, elas são racionalizações, positivamente, elas são formas
de
expressão. Isso se vê especialmente na prova cosmológica: ela parte do
condicionado
enquanto tal para elevar-se até o incondicionado. Pode-se proceder a
partir dos
fatos (de uma série causal até uma causa incondicionada) ou a partir
dos conceitos
(da contingência de cada ente para o pensamento até a conclusão de um
ente
necessário, do qual o pensamento não pode escapar). Nas duas deduções,
parte-se
do existente em geral para inferir um existente incondicionalmente: se
algo existe,
então algo deve existir incondicionalmente. Esta fórmula exprime o
abalo do
condicionado na sua mundaneidade. Logo, é uma intuição originária, não
uma prova21.
Pois,
pressupõe-se o que seria preciso provar: o ente é algo condicionado e,
em
consequência, remete imediatamente ao incondicionado. Se o
incondicionado for o
que é preciso provar, inferindo a partir do condicionado, a prova será
insuficiente. Isso foi bem visto por Kant. Contudo, a forma do
argumento pode
se manter intata enquanto expressão do abalo.
Tillich
dá razão a Kant por reduzir a prova
teleológica à prova cosmológica: é que o princípio da causa final já
inclui o
princípio de causalidade. Contudo, mesmo se a prova cai, continua
possível
pensar uma finalidade inerente ao mundo ou teleologia, na medida em que
a prova
só leva até a ideia do cosmos. Mas o cosmos real está atravessado por
uma
“dis-teleologia” tão poderosa quanto a sua teleologia. Kant ficou
impressionado
pela prova teleológica de Deus. Na realidade, a prova não leva até
Deus, mas
até o sentido do ente. Tendo sentido, o ente fica preservado do abalo,
mesmo
entrando constantemente em confronto com o não-sentido. Porém, todo ato
de
sentido, como cada ente, está exposto à relação, aberta pelo choque
revelatório, ao fundamento incondicionado do sentido, assim como ao
abismo
incondicionado, de modo que um sentido individual nunca pode se
sustentar a si
mesmo. De qualquer modo, fica claro que, seja a respeito do ser ou do
sentido,
é sempre o abalo e a reviravolta que encontram expressão nas provas de
Deus.
Essa concepção da prova teleológica exprime também o que há de justo na
prova
moral de Deus. Não é a harmonia da virtude e da beatitude, como em
Kant, mas a
incondicionalidade do sentido no agir prático.
A
tentativa mais acabada de racionalização é a
prova ontológica de Deus. Isto é: a ideia do ser mais perfeito inclui a
sua
existência, já que o ser mais perfeito é maior que quando é apenas
pensado.
Fundamenta-se na ideia que o ser é uma perfeição. A crítica kantiana
fracassa,
porque o ser é mesmo um predicado (contrariamente ao que diz Kant); mas
é um
predicado que não afeta a essência e o valor de uma coisa em si mesma.
O que
precisamos fazer é perguntar qual é o sentido de designar o ser como
uma
perfeição. Para o pressuposto realista, ser perfeito é possuir o grau
mais
elevado ou a plenitude do ser. Além disso, o ente mais perfeito, que
possui a
plenitude toda de ser, deve ser não um simples objeto de pensamento,
mas também
uma realidade, algo objetivo. Essa afirmação não é o resultado de um
silogismo,
mas de uma atitude: o ser mais perfeito, não podemos não pensa-lo. Pois
pensar
e ser constituem uma unidade. Os graus de generalidade, logo do
pensamento, já
são os graus do ser. Este conceito de ser difere profundamente do
conceito de
Kant: é um conceito místicotranscendente. Então, é correto dizer: o
sendo (Seiende)
incondicionalmente não pode ser apenas pensado. Senão, não seria o
sendo
incondicionalmente. Ele constitui o prius do pensamento, não o
inverso.
Precisamos
colocar esse modo de pensar no
contexto de acesso místico imediato ao sendo incondicionalmente,
característico
do pensamento medieval, e de confiança racional no mundo, que ainda
existia na
época da Aufklärung. A prova ontológica é apenas um caminhar
intelectual a
partir dos mais baixos graus do ser até o mais alto. Ela não é um abalo
religioso. O incondicionado, que é o prius do pensamento, não
pode ser
simplesmente objeto do pensamento, mas se aniquila enquanto objeto. O
ser
incondicionado é o abismo e o fundamento do pensamento. As provas
cosmológica e
noológica (= oriunda do espírito ou pensamento: Nous) exprimem
a nossa
sujeição ao abalo e à reorientação da mundaneidade. Elas exprimem o
fato de que
o nosso conhecimento do mundo não é um refúgio onde se poderia escapar
de Deus:
elas mostram, antes, que o abalo que vem de Deus atinge também o
pensamento. É
apenas sobre esta base que a filosofia da religião se torna possível.
2.2.
Teísmo e supranaturalismo
No
Tillich do período americano, a crítica do
teísmo acompanha a crítica do supranaturalismo. O supranaturalismo é
uma
teologia que afirma a existência de um mundo supranatural ao lado ou
acima do
mundo natural, um mundo no qual o incondicionado ocupa um determinado
espaço –
ou seja, Deus torna-se um objeto mundano, a criação um ato no começo do
tempo e
a realização definitiva uma situação futura das coisas. Isto é, o
incondicionado é transformado em condicionado.
O
supranaturalismo separa Deus como um ser, o
ser supremo, dos demais seres, ao lado e acima dos quais ele tem a sua
existência. Este Deus criou o universo num determinado momento do
tempo,
dirige-o a um fim, interfere em seus procesos normais para superar a
resistência e cumprir seu propósito, e o conduzirá à consumação numa
catástrofe
final. Esta interpretação transforma a infinitude de Deus em finitude
dependente
das categorias de espaço, tempo, causalidade e substância.
Para Tilich, Deus não seria Deus se não fosse o
fundamento criativo de tudo o que tem ser. De fato, ele é o poder
infinito e
incondicional do ser ou, utilizando uma abstração ainda mais radical,
ele é o
ser-em-si. Neste sentido, Deus não está ao lado das coisas nem “acima”
delas,
mas está mais próximo das coisas do que elas de si mesmas. Ele é o seu
fundamento criativo, aqui e agora, sempre e em todo lugar. A afirmação
fundamental sobre Deus, que ele é o ser-em-si ou o poder do ser, excluí
que ele
seja um ente ao lado de outros entes, uma coisa cósmica ao lado de
outras, e não
o fundamento ou o sentido do ser.
Assim, o Deus do teísmo teológico é um ser ao
lado dos outros, isto é, uma parte do conjunto da realidade, submetida
à
estrutura do real, por mais que seja a parte mais importante do real.
Ele é um
ser, não o ser-em-si. Submetido à estrutura sujeito-objeto, ele se
torna objeto
para nós sujeitos e, enquanto sujeito, faz de nós seus objetos. Deus
aparece
como o tirano invencível que poda a nossa subjetividade e a nossa
liberdade.
Além de desenvolver os pretensos
argumentos a favor da existência de Deus, o teísmo teológico
procura
sistematizar teoricamente o encontro pessoal com Deus como encontro de
duas
pessoas que possuem uma realidade independente uma da outra. É a
crítica do
teísmo e do supranaturalismo que exige uma reinterpretação das chamadas
“provas
da existência de Deus”, isto é, implica na rejeição das provas da
existência de
Deus enquanto “provas”22.
2.3. Os argumentos na Teologia Sistemática e
no artigo Dois tipos de filosofia da Religião
Na Teologia Sistemática, Tillich
distingue a forma argumentativa do sentido implícito dos argumentos
tradicionais a favor da existência de Deus. É preciso rejeitar a
primeira,
enquanto podemos aceitar o último. No fundo, já os escolásticos, a
pesar de
formulações infelizes, “não queriam falar da ‘existência’, mas da
realidade, da
validez, da verdade da ideia de Deus, uma ideia que não trazia a
conotação de
algo ou alguém que poderia existir ou não”23.
Para
Tillich, Deus não existe, mas é o serem-si para além de essência e
existência.
Resulta daí que todo argumento a favor da existência de Deus seria uma
negação
de Deus. Falar em existência de Deus equivale a colocar o fundamento do
ser
dentro da totalidade dos seres. Tampouco podemos encontrar Deus na
conclusão de
uma argumentação lógica a partir do mundo, quando Deus é deduzido do
mundo. Se
derivarmos Deus a partir do mundo, ele não poderá ser aquilo que
transcende
infinitamente o mundo.
Na
realidade, os argumentos ou provas da existência de Deus são
expressões da pergunta por Deus que está implícita na finitude humana.
É que a
pergunta por Deus pressupõe uma consciência de Deus.
É o
caso do chamado argumento ontológico, que
aponta para a estrutura ontológica da finitude. Para o ser humano, a
consciência de sua finitude contém a consciência de sua infinitude
potencial.
“O argumento ontológico nos oferece, em suas várias formas (Agostinho,
Anselmo,
Descartes, Kant), uma descrição de como a infinitude potencial
está
presente na finitude efetiva”24.
As
diversas elaborações do argumento mostraram a presença de algo
incondicional
dentro do eu e do mundo e é este elemento que possibilita a formulação
da
pergunta por Deus. Deus não é uma ideia, mas uma realidade experiencial
e acessível
a todo ser humano. Mas não se pode usar a experiência de um elemento
incondicional no encontro do ser humano com a realidade para
estabelecer um ser
incondicional (uma contradição em termos) dentro da realidade (como fez
Anselmo, quando, a partir do seu realismo epistemológico, transformou o
primum
esse no ens realissimum, isto é, o princípio universal num ser
universal). A verdade contida no argumento ontológico é o
reconhecimento do elemento
incondicional na estrutura da razão e da realidade.
Os chamados argumentos
cosmológicos e teleológicos a favor da existencia de Deus (Tomás
de
Aquino, Leibniz etc.) são a forma tradicional da questão do ser que
vence o
não-ser (culpa, perda de sentido, morte) e da coragem que supera a
angústia. O
argumento cosmológico no sentido restrito demonstra a existência de um
ser
infinito a partir da finitude do ser: a cadeia infinita de causas e
efeitos ou
a contingência de todas as substâncias. Na
realidade,
a “causa primeira” e a “substância necessária” às quais se chega são
categorias
da finitude hipostasiadas, “são símbolos que expressam a questão
implícita no
ser finito, a questão daquilo que transcende a finitude e as
categorias, a
questão do ser-em-si que engloba e vence o não-ser, a questão de Deus”25.
Encontramos a mesma afirmação na “Dimensão perdida”:
A
ideia de Deus e os símbolos usados para descrevê-lo expressam a
preocupação ais
profunda do ser humano. Reduzidos ao único plano horizontal, fazem de
Deus um
er entre outros cuja existência ou não-existência precisa ser provada.
Talvez a
disputa a respeito da existência de Deus – disputa na qual as duas
partes estão
erradas – seja o sintoma mais claro do esquecimento da dimensão da
profundidade26.
E
ainda na coletânea de sermões “The Shaking of Foundations”: “O nome da
profundidade inexaurível e do fundamento infinito de todo ser é Deus”27.
O argumento teleológico parte da
estrutura significativa e compreensível da realidade, do seu telos interno,
para chegar à conclusão de que as finalidades finitas implicam numa
causa
teleológica infinita e que os sentidos finitos e ameaçados implicam
numa causa
infinita e não ameaçada de sentido. De novo, esses argumentos só valem
enquanto
formulação da questão de um fundamento infinito, não ameaçado, de ser e
de
sentido.
Em todas as suas
variantes, estes argumentos (cosmológicos e
teleológicos) partem das características específicas do mundo para
desembocar
na existência de um ser supremo. Eles são válidos na medida em que
proporcionam
uma análise da realidade segundo a qual a questão cosmológica de Deus é
inevitável. Eles não são válidos na medida em que reivindicam o fato de
que a
existência de um ser supremo seja a conclusão lógica de sua análise, o
que,
logicamente, é tão impossível quanto é, existencialmente, derivar a
coragem da
angústia28.
Tudo
isso significa que não há uma demonstração
lógica da existência de Deus, mas uma consciência ontológica e um
conhecimento
cosmológico do incondicional. No primeiro caso, Tillich enuncia o
seguinte
princípio: “Os seres humanos são imediatamente conscientes de algo
incondicional que é o prius da separação e da interação entre
sujeito e
objeto, tanto teórica como praticamente”29.
É o
ser humano inteiro, em todas as suas
funções, que tem
consciência do incondicionado. Este não é um ser, nem o mais alto, nem
mesmo
Deus. Deus é incondicionado, mas o “incondicional” não é Deus. Ao termo
Deus
correspondem diversos símbolos concretos que expressam a nossa
preocupação
suprema ou o fato de sermos tocados por algo incondicional. “Mas esse
‘algo’
não é uma coisa, mas o poder de ser no qual todos os seres participam”30.
Tentar
provar a existência de Deus equivale a trata-lo como um objeto. E “o
ateísmo é
a resposta correta e teológica a essas tentativas”31.
Por
outro lado, podemos formular do modo
seguinte o princípio cosmológico: “O incondicionado que apreendemos
imediatamente, sem inferências, pode ser reconhecido no universo
cultural e
natural”32.
A partir da análise da
finitude à luz da consciência do incondicionado, surge um novo modo de
percepção cosmológico, por meio de conceitos como contingência,
insegurança,
transitoriedade e seus correlatos psicológicos: angústia, preocupação e
falta
de sentido. Podemos também perceber o elemento incondicional na
criatividade da
natureza e da cultura. Em particular, torna-se possível uma
interpretação
religiosa da cultura, pois cada criação cultural é expressão da
preocupação
suprema ou do fato de ser tocado pelo incondicionado, pela sua irrupção
no
condicionado.
O conhecimento do Deus que é, ao
mesmo tempo, fundamento do ser e de todos os entes, e o “totalmente
outro” ou o
“extaticamente transcendente”, é analógico ou simbólico, e não
objetivo. Embora
use o material da experiência cotidiana para falar de Deus, todo
símbolo
religioso se nega a si mesmo em seu sentido literal, mas se afirma em
seu
sentido autotranscendente. Isto é, todo símbolo religioso é paradoxal,
pois
contém, ao mesmo tempo, um elemento de propriedade e um elemento de
inadequação.
O símbolo representa o poder e sentido daquilo que simboliza através de
sua
participação nele. Tudo o que a religião afirma sobre Deus, inclusive
suas qualidades,
ações e manifestações, tem um caráter simbólico33.
No
artigo Dois tipos de filosofia da
religião (1946), já citado, Tillich estende o mesmo raciocínio ao
argumento
moral de Kant:
Afirma-se
frequentemente que o tipo moral de filosofia da religião (a partir do
assim chamado
argumento moral de Kant em favor da existência de Deus) representa uma
novidade.
Mas não é bem assim. O argumento moral pode ser interpretado tanto
cosmológico
quanto ontologicamente. No primeiro caso, seria fundamento de uma
inferência
chegando ao ser superior para garantir a unidade suprema de valor e
perfeição, ou
a crença no poder vitorioso do processo criador de valores. No segundo
caso, a
experiência do caráter incondicional do mandamento moral é,
imediatamente, sem
qualquer inferência, a percepção do absoluto, embora não do ser supremo34.
2.4.
O curso de Harvard sobre Filosofia da religião35
No curso de filosofia da religião
de Harvard (1962), Tillich faz uma exposição mais pormenorizada dos
argumentos.
No caso do argumento ontológico, ele distingue entre uma forma externa
e uma
forma interna. O argumento ontológico externo é o platônico: só podemos
ter uma
medida do bom, do verdadeiro, do belo porque o nosso espírito (nous)
participa do bom em si, do belo em si, do verdadeiro em si. Trata-se da
ideia
ou visão (eidos) (não da boa ideia!),
da imagem
esencial que nos permite reconhecer uma árvore ou um ser humano quando
os
encontramos. A ideia é algo bem real, é o poder de ser de uma coisa.
Então,
deve haver uma ideia ou essência do bem que é a mais alta de todas, que
inclui todas as outras essências e que é o
critério para bom e o
mau. Aqui, Platão comete o famoso salto, ao chamar esta natureza
essencial de
“Deus”. Na realidade, ele usa de cautela, ao não dizer simplesmente que
há um
ser existente que é bom. Platão diz: eis a fonte de toda bondade, a
ideia, a
essência do bem, e ele não vai além disso. Ele chama essa ideia “o
divino” ou
“Deus”, mas não é um ser, Platão usa o mesmo raciocínio a respeito do
belo e do
verdadeiro. Tudo isso leva até a esfera do último, até o problema, a
questão de
Deus, mas não leva à existência de um Deus ou de vários seres chamados
deuses36.
O argumento ontológico interno é a forma
anselmiana ou agostinhana. O argumento já foi refutado muitas vezes
(Duns
Scotus, Hume, Kant etc.), mas a refutação não alcança realmente o
sentido do
argumento, o sentido que Tillich chama “descrição”: a face descritiva
de todos
os argumentos é verdadeira, justificada. A face argumentativa,
conclusiva, o
salto para a existência de um ser supremo é falsa, porque o Ultimo não
“existe”. O que existe, existe nas condições da existência, o que
significa
tempo e espaço, existere, “ir da potencialidade à atualidade”,
mas Deus,
conforme a intenção religiosa, está além disso. A descrição do
argumento
ontológico interno é verdadeira: olhamos para dentro de nós e
descobrimos nas
profundidades do nosso próprio ser a presença, a consciência de algo de
infinito apesar da nossa finitude. “Descobrimos o que chamei – numa
outra aula-
o princípio da coincidencia do finito e do infinito.” Não é um ser,
pois não
seria incondicionado, mas muito condicionado. Mas há consciência do
princípio
do infinito, do incondicionado, do absoluto, independentemente do modo
como
queiramos nomeá-lo. Está presente em termos de uma preocupação
incondicional,
do caráter incondicional do verdadeiro e do imperativo moral. Toda
tentativa de
estabelecer a existência de Deus o torna menos que Deus, lhe atribui o
papel de
um ser finito ao lado de outros seres finitos.
Há outra forma do argumento ontológico,
desenvolvida por Agostinho na sua discussão com quem duvida. Ele
aparece do
seguinte modo: “Você está duvidando; isto significa que você está
procurando a
verdade, que você aceita a ideia de verdade, mas você não sabe como
alcança-la.
Ao duvidar, você afirma a ideia de verdade que está agindo em você”.
Até aí,
está certo. Não o salto que Agostinho faz em forma de oração: “E essa
verdade
es tu, meu Deus”. O que é verdadeiro é que onde há um ser humano (um
ser que
não está completamente submetido ao reino temporal das coisas), o
estado de
estar guiado pela busca da verdade, pelo reconhecimento da verdade,
apresenta
algo de incondicional, embora toda expressão humana do incondicional
seja
condicionada. E a consciência de algo incondicional em todas
as condições da existência é universalmente humana. Mas não leva
a um
ser existente chamado Deus37.
Tillich
distingue uma forma negativa e uma
forma positiva do argumento cosmológico: Os argumentos cosmológicos
partem da
experiência do mundo. Olhando para a realidade que encontramos, achamos
fatos
nela, que podemos chamar “estigmas” (como as chagas de São Francisco de
Assis).
Toda coisa no mundo apresenta o estigma, a marca da finitude. A partir
daí,
desenvolve-se os argumentos cosmológicos negativos. Uma primeira forma
é a
passagem da experiência da contingência, da não necessidade de cada
coisa e da
própria existência à afirmação de algo absolutamente necessário. E esse
“algo
necessário” é identificado com o Divino. Uma segunda forma admite que
toda
realidade pressupõe uma causa, a qual pressupõe também uma causa e
assim por
diante, numa infinita corrente de causas. Daí o argumento: deve haver
uma causa
primeira no início do encadeamento das causas finitas. Aí vem a
terceira forma:
para que possa existir uma realidade condicionada, devemos pressupor
algo
incondicional, que chamamos o Divino. Em termos de conclusão (do
contingente ao
necessário, da corrente das causas à causa primeira, do condicionado ao
incondicionado) o argumento não pode nunca levar até um ser divino
porque, se a
causa é causa, a nossa mente não pode parar de perguntar pela sua
causa. Temos
as famosas palavras de Kant criticando os argumentos cosmológicos: “Tal
ser
supremo chamado Deus, que é a primeira causa, perguntaria a si mesmo: e de onde sou eu? [...] Neste momento, tudo
desaparece para
nós e estamos num vácuo que é pior que as piores imaginações de um
poeta desse
tempo”. Seria a falência da própria razão crítica. Isso significa que,
por esse
caminho, nunca chegaremos até um assim chamado Ser supremo38.
O
argumento teleológico é chamado de argumento
cosmológico positivo: É geralmente chamado de argumento do desígnio ou
de
argumento teleológico. A palavra grega Telos designa o fim
interno, a
causa que governa a minha vida, que ele possa ou não ser alcançado. É o
que
Aristóteles chamava entelechia. A finalidade interna está
presente em
todo elemento vital e também nas estruturas que mantém o universo
unido. De
novo, não se justifica dar o salto do desígnio ao criador do desígnio.
O que se
pode fazer, como Heráclito e os estoicos, é descrever o universo como
algo
determinado pelo logos ou determinado pela sabedoria em toda a
sua estrutura.
Só podemos descrever o caráter ou sentido teleológico da totalidade do
real. Mas
há também uma dis-teleologia, o oposto da finalidade interna. São as
formas
destrutivas. Como disse Heráclito, não há apenas o logos, mas
também a moria, a loucura do real. Faz parte
da
descrição da realidade o conflito permanente entre uma estrutura
fundamentalmente
sensata e a contradição da falta de sentido nela em cada momento39.
Kant mostrou que em todos os
argumentos cosmológicos, há um elemento ontológico, isto é, o
pressuposto que
colocamos a questão do finito, que não estamos satisfeitos e não
podemos nos
identificar com a nossa finitude, que a transcendemos. Em todas
as nossas experiências da finitude há um elemento que nos leva
além da simples
aceitação, a formular a questão sempre posta em todo o gênero humano.
Essa questão
pressupõe a presença da experiência do que não é simplesmente causado
ou condicionado
ou finito. É neste ponto do argumento cosmológico que está implicado um
elemento ontológico: porque alguém que é consciente da sua finitude
pode sentir
essa finitude como algo que o leva a uma pergunta, se ele não está
consciente
de algum modo do infinito que se opõe a ele?40
A defesa de Kant a favor do
argumento moral cai perante a própria crítica aos outros argumentos. O
que é
verdadeiro no argumento de Kant – assim como nos outros argumentos – é
a
experiência do caráter incondicional do imperativo moral. Mas Kant tira
conclusões além dessa experiência, quando parte da ideia que, já que em
nosso
tempo de vida, o elemento moral e a felicidade não coincidem, deve
haver uma
realização da unidade de ambos, uma realização do nosso ser pela
obediência ao imperativo
moral, e o garante, o fiador (não a garantia) desta unidade é Deus.
Deus é
assim deduzido enquanto postulado ou exigência lógica. Mas não há como
provar isso
efetivamente41.
Deus garante que aquele que
vive conforme ao imperativo moral alcançará a felicidade, talvez não
nessa
vida, mas numa outra vida, e garante também, desse modo, a imortalidade
da
alma.
No mesmo curso de Harvard,
Tillich fala nas provas da existência de Deus no contexto da discussão
sobre os
métodos da filosofia da religião. O método mais antigo, já presente na
Grécia
clássica e atravessando a história do pensamento até o século XX, é o
método
ontológico da finitude. A sua motivação é a questão do estatuto
ontológico dos
deuses. A questão é sempre: o que dizer de Deus,
dos deuses?
São coisas, objetos, seres humanos? Eles possuem
realidade ou
são produtos da imaginação? Essas questões partem de um
pressuposto: de
que a validade da religião, de seus atos de devoção e obediência,
depende da
existência de seres que são chamados deuses ou Deus, dentro ou fora do Cosmos.
Então, a filosofia da religião procurou fundamentar racionalmente o
dado da fé,
para ajudar aqueles que duvidam da existência de Deus. Assim, ela
elaborou o
argumento a favor da existência de Deus. Outra forma de filosofia da
religião
tentou argumentar a favor da sua inexistência. Ora, ambas
as
tarefas são impossíveis, pois a primeira coisa que precisamos dizer a
respeito
de Deus, é que Deus não existe em nenhum dos sentidos possíveis da
palavra
“existência”. Ele está além da essência e da existência. Então, as
provas a
favor da existência de um ser chamado Deus levam a tudo, salvo até
Deus.
Contudo, esses argumentos devem ser discutidos, mas não como provas da
existência
de um ser ao lado de outros seres. Eles possuem um valor infinito – e,
por isso,
resistem até hoje – por outro motivo: sua validade reside na descrição,
negativa ou positiva, da situação humana, que eles fornecem, na
descrição da
finitude do ser humano e do seu mundo e, ao mesmo tempo, na descrição
da
participação do Infinito no finito e vice-versa. O que não se justifica
é o salto
que eles fazem, da análise da finitude da existência para um ser
chamado Deus.
Tillich
pergunta, no final, porque há um grupo
entre os maiores filósofos de todos os tempos que se deixa convencer
pelos
argumentos e há um grupo de outros filósofos tão importantes que os
rejeita.
Deve haver para isso um motivo mais profundo. Tillich chega de novo à
resposta
de que a descrição da realidade encontrada como contingente e
condicionada numa
corrente de causas e efeitos é um elemento existencial em toda a
filosofia do
passado. É o que os existencialistas (e Tillich remete à experiência do
ser-jogado, de Heidegger) chamam hoje, com uma só palavra, descrição da
finitude. Os argumentos formulados no passado antecipam o que o
existencialismo
moderno formulou numa terminologia mais psicológica. Em suma, na
análise da
finitude, há sempre uma experiência do contrário. Para poder dizer de
algo que
é finito, precisamos ter em nós a consciência do infinito que o finito
não é e
do qual está excluído. Desde a mais antiga mitologia, uma questão foi
sempre colocada:
O que significa o fato da finitude? Há
sempre uma
consciência do oposto, do infinito, do incondicional, da causa
primeira, do
absoluto, do necessário. Nós humanos fazemos essa experiência com todo
o nosso
ser: descobrimos o elemento do finito e descobrimos o elemento do
infinito que
se opõe ao finito e do qual o finito está excluído. A questão do
infinito não
pode levar ao estabelecimento de um ser infinito. A religião é a
experiência
extática na qual a questão do infinito encontra resposta numa linguagem
simbólica. Mas essa experiência não pode ser substituída por um
argumento,
porque os argumentos se movem sempre dentro da realidade finita e só
podem
levar até seres finitos42.
Considerações
finais: a fé da razão
Tillich
compartilha
com Kant a consciência imediata do Incondicionado, seja na forma do
imperativo
moral ou do Ultimate Concern que transparece através de todas as formas culturais. Em Kant como em
Tillich, a
experiência da presença do incondicionado na consciência substitui os
argumentos para a existência de Deus. Em Kant, essa substituição é
apenas
parcial, pois, a partir daí, ele tenta estabelecer um novo argumento a
favor da
existência de Deus. Em relação a Kant, Tillich coloca a religião no
sentido
amplo no lugar da moral. É a religião enquanto manifestação do
Incondicionado
que dá sentido à moralidade e à cultura. Podemos dizer que nos dois
casos, o
incondicionado é objeto de uma intuição originária que se expressa num
conceito
místico-transcendental puramente formal.
O
pensamento moderno
opera uma estrita separação entre a fé e a razão. Elas são válidas,
cada uma na
sua ordem, com a condição de não querer interferir no domínio da outra.
É a
posição de Kant, que reserva, todavia, uma zona fronteiriça, na qual a
filosofia pode ainda aprender muito da fé, tendo, contudo, a última
palavra a respeito
dos principais problemas que preocupam o ser humano. Falamos a respeito
de Kant
de uma fé da razão. De fato, haveria, no pensamento de Kant, ainda
lugar ainda
para certa fé, não uma fé estatutária, feita de crenças, de ritos e de
instituições, mas uma fé originária da razão, condição de possibilidade
de todo
sentido, religioso ou não.
Por sua
vez, Tillich
fala num “êxtase da razão”. Para Tillich, a fé é preocupação suprema,
primeira
e última, é o fato de ser possuído pelo Incondicionado, antes e além de
toda
preocupação concreta e de toda nomeação do Incondicionado. Em outras
palavras,
a fé diz respeito a um originário, anterior ao sentido e à própria
linguagem, fonte
última e abismo do sentido. A fé é o direcionamento para o
Incondicionado. “A
fé aponta para uma dimensão ontológica que está além da capacidade
humana de
explicação pelo entendimento43.
Mas a razão é condição de possibilidade da fé: a fé é o ato pelo qual a
razão
esforça-se por alcançar, de modo extático, um além de si mesma44.
Consciente de sua finitude, a razão a supera. Ela é empurrada para além
de si
mesma, sem deixar de ser razão e razão finita. O êxtase é a realização
e não a
destruição da razão. A fé é a razão em êxtase45.
Ela é transcendência imanente ou abertura do mundo à exterioridade.
A fé absoluta, ou o estado de ser possuído
pelo Deus
além de Deus (God beyond God) [...] é sempre um movimento
presente em,
com e subjacente aos outros estados do espírito. É uma situação na
fronteira das possibilidades humanas. Ela é essa fronteira. [...] Ela é
sem
nome, sem igreja, sem culto e sem teologia. Mesmo assim, é ela que
opera na
profundidade de todas estas realidades. Ela é o poder do ser, do qual
cada uma destas
realidades participa e do qual elas são expressões fragmentárias46.
Para
Tillich, o equívoco mais frequente
consiste em considerar a fé como ato de conhecimento comportando um
fraco grau
de certeza. Ao contrário, a fé é participação ao que nos importa de
modo
absoluto, participação com o nosso ser inteiro. A certeza da fé não se
baseia
em nenhuma evidência perceptiva ou teórica. Ela é “existencial”, o que
significa que a totalidade da existência – e, singularmente, a práxis -
está
envolvida nela. É uma questão de “ser ou não ser”47.
Numa
outra ocasião, mostrei como o pensamento
de Kant encontra prolongamentos na reflexão filosófica sobre a religião
de dois
autores chamados pós-modernos: Jacques Derrida e Jean-Luc Nancy. Para
Jacques
Derrida, trata-se de encontrar a condição de possibilidade abstrata, a
origem
comum da fé e do saber (ou razão). O seu lugar comum identifica-se com
a
estrutura a priori (axioma) da experiência – anterior ao a priori religioso
de um possível homo religiosus –, ou com uma revelabilidade
pressuposta
por toda revelação religiosa ou racional, ou ainda com o vínculo social
originário anterior a todo vínculo social concreto. Neste lugar dos
limites da
simples razão, fé e razão identificam-se de certo modo, enquanto fontes
da
religião, enraizadas na mesma condição de possibilidade, na mesma luz
originária
ou no mesmo deserto no deserto. A fé que habita qualquer ato de
linguagem e qualquer mensagem dirigida ao outro é um evento
performativo
axiomático (quase transcendental) ou místico exterior e anterior à
realidade
fundada48.
Retomando
a abordagem de Kant, Jean-Luc Nancy
parece evitar o lugar da fronteira ou dos confins da religião histórica
e da
religião racional, optando decididamente por uma fé sem religião, uma
fé que
seja desprovida de crenças, de ritos e de instituições. O pensamento
está
diante da tarefa de abrir a racionalidade à dimensão própria do
absoluto, de
dar lugar – conforme as palavras de Kant – a uma fé da razão. Kant
escreveu:
“Tive que suprimir o saber para dar lugar à fé”. Não há outro
preenchimento de
sentido além da própria visada ou intencionalidade da fé. Ela é
atestação de
uma ausência de presença e semelhança. Seu verdadeiro correlato não é
um
objeto, mas a palavra de Deus ou a palavra do outro. Distinta de
qualquer crença,
a fé é por si mesma, fidelidade, confiança e abertura da possibilidade
em que ela
confia. Nessa condição, é sempre adesão ao infinito de sentido.
A fé é
o ato da razão que se refere, por si
mesma, ao que a transpassa e ultrapassa infinitamente. Pois a própria
razão
exige incondicionalmente uma abertura e uma elevação acima de si mesma.
A fé é
o local de nascimento, o evento criador de “algo”, “alguém” ou o “nada”
ao qual
ela remete. Deus aparece, assim, como fruto da fé, a qual, ao mesmo
tempo,
depende totalmente da sua graça. Só podemos aceder à palavra (à
linguagem) e ao
sentido graças à fé, isto é, uma confiança prévia no sentido ao qual o
outro
nos convida. Nancy remete aqui a Derrida, quando este fala “do que na
fé diz
‘sim’ antes ou além da questão, na experiência já comum de uma língua e
de um
‘nós’”49.
Tanto
em Derrida quanto em Nancy, há fé,
confiança, crédito na possibilidade originária como estrutura geral da
experiência, condição de possibilidade da linguagem e do sentido. Há
confiança
prévia no sentido originário e na alteridade absoluta, como a priori,
quase transcendental.
Não
posso deixar de ressaltar, ao terminar, a
dependência de todos esses autores em relação ao cristianismo, enquanto
fundo
indestrutível da cultura ocidental. No caso de Kant e Tillich, trata-se
de um
cristianismo bem protestante. Tillich reconhece que a teologia
protestante só
pode aceitar a teologia natural – que produziu os argumentos a favor da
existência de Deus - dentro dos limites que ele colocou na sua
reinterpretação
dos argumentos. Ele não quer adotar uma posição protestante radical,
como a de
Barth, que rejeita taxativamente qualquer tipo de teologia natural, mas
se
recusa também a voltar aquém de Kant, cujo pensamento constitui para
ele um
divisor de águas.
1 Os
principais expoentes dos argumentos
são Anselmo de Cantuária, com o seu “argumento ontológico”, inspirado
em
Agostinho e retomado mais tarde por Descartes, e Tomás de Aquino, com
as suas
“cinco vias” (quinque viae). Não é possível apresentar aqui a
formulação
original dos argumentos, que aparecerá subjacente à exposição dos
pensamentos
de Kant e Tillich. Sobre a elaboração medieval dos argumentos, remeto a
E.
GILSON e P. BOEHNER. História da Filosofia Cristã: desde as origens
até
Nicolau de Cusa, 13ª. ed., Petrópolis: Vozes, 2012. Há uma
exposição quase
exaustiva da história dos argumentos na tese de G. E. EMÍLIO. Os
argumentos da
existência de Deus à luz da ontologia de Paul Tillich. Universidade
Federal de
São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas: Guarulhos –
SP,
Brasil, 2017. Acessível no site da Universidade.
2 W.
WEISCHEDEL (Hrsg.). I. KANT, Werke
in zehn Bänden. Band 3, Kritik der reinen Vernunft. Erster Teil Darmstadt
: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Sonderausgabe, 1983, p.
33: Ich
musste also das Wissen aufheben, um
zum Glauben Platz zu bekommen.
5 L.
LANGLOIS. O fim das coisas e o fim da liberdade, pp. 202-206.
|